Spartacus foi a primeira grande produção de Stanley Kubrick, trabalhando como diretor contratado de estúdio, um emprego conseguido por Kirk Douglas, com quem havia feito o anterior Glória Feita de Sangue. A experiência, porém, não foi bem vista por Kubrick, que depois de concluída a pós-produção do filme decidiu nunca mais trabalhar para um estúdio novamente. Quem fala sobre um dos grandes épicos do cinema é Robson Galluci, no quinto filme deste especial.
Spartacus (Spartacus, 1960)
Spartacus foi o filme mais importante para a carreira de Stanley Kubrick.
Antes que o leitor fique indignado ao ver obras como 2001 ou Laranja Mecânica preteridas em relação a esse épico, devo lembrar que há uma considerável diferença entre “filme mais importante da carreira” e “filme mais importante para a carreira”. Spartacus foi uma experiência bastante traumática para Kubrick: contratado por Kirk Douglas, produtor executivo e ator principal do projeto, para substituir Anthony Mann, o diretor sentiu-se amarrado durante toda a produção — suas idéias raramente batiam com as de Douglas, que tinha a palavra final. Foi por causa de Spartacus, portanto, que Kubrick decidiu que nunca mais trabalharia como diretor contratado — garantiu que, dali em diante, só entraria em projetos nos quais tivesse liberdade criativa absoluta. E é por esse motivo que considero o filme como o mais importante para a carreira do diretor; foi o estopim que permitiu a realização das posteriores obras-primas do cineasta.
É um exercício interessante comparar Spartacus com os primeiros filmes de Kubrick, A Morte Passou por Perto e O Grande Golpe (Fear and Desire não conta, já que era renegado pelo próprio diretor e foi tirado de circulação): se nestes podemos perceber os primeiros traços de um jovem que um dia se revelaria um gênio, em Spartacus podemos ver o mesmo realizador de antes, já em condições de fazer um filme brilhante (afinal, a obra anterior do cineasta fora o inesquecível Glória Feita de Sangue), mas não fazendo, por algum motivo. É a diferença entre “esse sujeito ainda vai filmar uma obra-prima” e “ele poderia ter feito melhor dessa vez”.
Isso não significa que Spartacus seja ruim ou medíocre, pelo contrário. Embora não esteja à altura das obras subseqüentes (com exceção de Lolita), o filme é um ótimo épico, mesmo tendo vindo depois de Ben-Hur. E, apesar de tudo, não há como negar que foi dirigido por Stanley Kubrick: sua assinatura inconfundível está lá, mesmo que um pouco apagada. Na beleza estética, podemos reconhecer o Kubrick que mais tarde nos presentearia com Barry Lyndon; no fundo político da trama, o Kubrick que mais tarde faria Dr. Fantástico e Laranja Mecânica; na escala grandiosa do filme, o Kubrick que mais tarde mostraria ao mundo seu épico peculiar, 2001: Uma Odisséia no Espaço.
Sem mais delongas, um resumo do enredo: Spartacus é um escravo trácio comprado por Lenulus Batiatus (Peter Ustinov, irrepreensível), que possui uma escola onde treina gladiadores. Durante uma visita do general Marcus Licinius Crassus (Laurence Olivier), Batiatus é persuadido a realizar dois combates que deverão se estender até que um dos oponentes morra. A situação é especialmente traumática para os escravos, que se vêem obrigados a lutar até a morte contra um amigo. A conseqüência é o início de uma rebelião na escola de gladiadores — rebelião que ganha aos poucos proporções épicas e se transforma no maior levante de escravos da história de Roma. Do outro lado, no Senado romano, estão o próprio Crassus, que vê na revolta uma oportunidade para adquirir poder, e Gracchus (Charles Laughton), que procura a solução que cause menos transtornos.
Um fator que diferencia Spartacus de outros épicos, e onde já se manifesta a marca de Kubrick, é que o maniqueísmo aqui é bem mais moderado. Todos os escravos são retratados como pessoas boas, simples, fazendo brincadeiras entre si, sem defeito algum, praticamente, mas o mesmo não ocorre no núcleo romano da história (que, por sinal, é o mais envolvente). Tomemos Gracchus como exemplo: simplificando as coisas, ele seria um dos mocinhos do filme, mas não é mostrado em momento algum como alguém perfeito ou completamente virtuoso — há inclusive um momento em que ele diz “Política é uma profissão prática. Se o criminoso tem o que você quer, negocie com ele.”, o que, infelizmente, não deixa de ser verdade.
Esse fundo político da trama, aliás, é um dos melhores aspectos de Spartacus, e mais um que traz a marca de seu diretor. (O filme foi acusado de ser comunista na época de seu lançamento, e ainda trazia Dalton Trumbo, que estava na lista negra de Hollywood, nos créditos.) É extremamente interessante acompanhar as jogadas (não há outra maneira de defini-las) dos senadores romanos, que não pensam duas vezes antes de manipular alguém ou se utilizar de uma oratória invejável com o objetivo de enfraquecer uma visão contrária à sua. Usando mais uma vez Gracchus como exemplo: a certa altura do filme, ele indica Marcus Glabrus (John Dall), comandante da Guarda Romana e pupilo de Crassus, para ir ao encontro do exército de Spartacus e vencê-lo. O ponto é que há uma grande chance de Glabrus perder o combate e voltar humilhado — e, assim, quem o substituiria seria o comandante provisório (que, por sua vez, é pupilo de Gracchus). Outros momentos ótimos são as estratégias e contra-estratégias de Gracchus e Crassus, das quais não vou falar aqui por ocorrerem já com o filme bastante avançado.
E chegamos a Crassus, que pode ser definido como o vilão da história… mas as coisas não são tão simples quanto parecem. Como dito acima, Spartacus é um filme que foge do maniqueísmo em certo aspecto — e isso é notável quando se trata do personagem do general. Embora o roteiro dê a oportunidade de retratá-lo como um homem maléfico e terrível, Crassus se mostra como alguém que simplesmente decidiu se adaptar ao seu meio — Roma, no caso. A cena em que ele diz ao seu criado que Roma domina o mundo inteiro, e que a única escolha inteligente é admirá-la e servi-la, revela bastante de sua personalidade. Crassus considera Roma um império indestrutível, e vislumbra a chance de chegar ao poder. Méritos para Kubrick e, principalmente, para Laurence Olivier, brilhante — houve momentos em que eu cheguei a torcer pelo general.
A direção de Kubrick também é ótima, embora não tão estupenda quanto a dos filmes que viriam a seguir, ou a de Glória Feita de Sangue. As seqüências de ação são incríveis, especialmente a batalha final entre os exércitos de Spartacus e Crassus: antes de ela começar efetivamente, Kubrick gasta vários minutos acompanhando a movimentação das tropas (em tomadas que certamente Peter Jackson viu), estabelecendo um clima de tensão admirável. Lançar um épico com cenas de ação marcantes apenas um ano depois de Ben-Hur e sua espetacular corrida de bigas é coisa para poucos. E, antes que me esqueça, preciso citar aquela que considero a melhor cena do filme: aquela em que Antoninus recita um poema cujo tema é o retorno para casa. É lírica, esplêndida… seria Kubrick ensaiando para 2001?
Não há muito mais o que falar sobre Spartacus. Elogiar a fotografia, de Russell Metty, ou a bela seqüência de abertura, do genial Saul Bass, e demais aspectos técnicos seria chover no molhado, repetir o óbvio. Ao contrário das obras posteriores de Kubrick, esse épico (ou melhor, Kirk Douglas) nunca teve a intenção de dar margem a discussões complexas sobre o homem, a guerra ou a sociedade. Inclusive, quando decidi escrever sobre Spartacus, o fiz por imaginar que seria mais fácil (fui preguiçoso, admito). Quase me arrependi da escolha, depois de rever o filme duas vezes em dois dias e contemplar o cursor piscando numa página em branco durante várias horas. Acabei chegando a uma conclusão: é difícil escrever sobre qualquer filme do diretor. Mas isso não deveria ser uma surpresa para mim; afinal, estamos falando de Stanley Kubrick.
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